sábado, 3 de setembro de 2016

Crítica do curta-metragem "Maicon - O Jogo da Vida"

*COM SPOILER*


Por volta dos meus quinze anos, conheci um grupo de rap gospel, chamado Apocalipse 16, bons tempos eram aqueles. Em suas músicas, que sempre busquei decorar assiduamente, nenhuma mexeu tanto comigo quanto a canção: Contos da Sul. Talvez por essa denunciar as diversas mazelas sociais (tráfico de drogas, machismo, assaltos, desigualdade social...), que afetam tantas pessoas, em nosso país e ao redor do mundo, e que obviamente sempre me rodeou, uma vez que sendo eu um garoto pobre, preto e morador de favela. Compreender as denúncias que aquela canção fazia, só seria possível a mim com o passar do tempo, mas não tinha ideia do quanto seria envolvido nessa reflexão. Até anos depois receber o convite de Deyvison Reis, para interpretar Maicon, um personagem de seu curta-metragem.

Baseado, na canção retratada acima, o curta é escrito e dirigido por Deyvison e coproduzido por Elton Rosa, que mostra a história de Maicon, um garoto deixado com Sebastião (Sérgio Lúcio), seu avô, aos cinco anos de idade, por Vânia (Meiriele Goltara) sua mãe.

A narrativa circular (que termina uma trama no ponto em que começou) usada no curta, não é empregada atoa, ela está a serviço da história, isso porque em geral, obras que utilizam esse tipo de narrativa costumam a não apresentar um final feliz. E é exatamente isso que veremos, manipulados pela mão do Diretor.

Em termos técnicos, Deyvison se mostra versátil com a sua câmera, tanto ao usar um travelling (movimentado-a), como na bela cena que mostra todo o morro do Forte São João no início do filme. Ao criar rimas visuais (com duas cenas: em que Maicon ainda criança, ao subir as escadas com sua mãe, passa chorando em frente a uma Cruz de madeira. E em outra cena ele agora já grande desce em frente à mesma Cruz, só que dessa vez desesperado devido à necessidade de ter que conseguir dinheiro para sustentar o seu vício) vale ressaltar que elas são gravadas em plongée e contra-plongée  (ângulos diferentes, com a primeira cena de baixo pra cima, e a segunda cena de cima para baixo).

Temos ainda uma tomada panorâmica, como na cena que mostra a Baía de Vitória em 180º graus, antes de Maicon começar jogar bola pela primeira vez no campinho. Tracking shot (cena que acompanha os pés de Maicon na partida de futebol), elipses (saltos temporais subentendidos na narrativa), como a cena de ostentação de troféus por parte de Sebastião. E o melhor é tudo isso sendo mostrada por uma câmera que em momento algum fica estática, ela parece respirar se mexendo levemente o tempo todo, o que cria um ritmo de inquietação enervante.

Já na fotografia, temos desde a escolha de paleta de cores amareladas, perfeitos para ambientação da história, uma vez que enaltece a estética cênica (terrenos, casas de lajotas sem reboco, terra, chão batido...) presente na geografia das cenas, e chegando até ao uso de uma paleta de cores mais acinzentada, como nas cenas em que Maicon usa drogas, que passa a ser mostrada rapidamente sem “cores”, sem variedade, dando lugar a um tom mais sombrio e frio, mais escuro. E que serve principalmente para evidenciar uma futura tragédia inevitável na vida do personagem.

Criando a sinestesia necessária para todas essas cenas, temos a trilha sonora, que acompanha constantemente os estados do personagem, tanto nos momentos felizes, sendo progressiva e mais pulsante, com direito a riffs de guitarra, presente nos primeiros momentos de Maicon jogando futebol.

Até aos acordes incômodos, que ouvimos quando Maicon começa (e se aprofunda) no uso de drogas, o que sugere à conturbação interna dele. Aquela cena em que ouvimos o que seria como um batimento cardíaco, no momento em que Maicon executará o seu assassinato é um ótimo exemplo de como a trilha sonora é imersiva, já que através dela sentimos perfeitamente o estado de espírito do personagem.

E se criamos empatia para com o personagem Maicon, parte se deve também ao trabalho de interpretação de Davi Reis (fase infantil) e Wallace Pontes/Eu (fase adulta) que estão totalmente  investidos em suas performances, Davi com pouco tempo de tela entrega uma cena verossímil de um episódio de choro e irritação. Gustavo Trinxet (fase adolescente) entrega o necessário.

Já  Wallace Pontes como Maicon ('não me sinto confortável, avaliando a minha própria interpretação), espera que o espectador que viu a obra, tire suas próprias considerações. Sérgio Lúcio como Sebastião, tem uma atuação respeitável, contida, e sem afetação, e fechando o elenco principal Meiriele como Vânia, contribui para empurrar a narrativa assim como os demais personagens da história.

Mesmo diante de um elenco afiado, as atuações são monotônicas (não apresentam mais camadas em sua personalidade) - o que evidencia a maior fragilidade da obra, o roteiro. É um roteiro excessivamente expositivo, com diversas frases de efeito, que nunca soam orgânicas. Não apresenta uma consistência na construção dramática, como vemos na “cena do assassinato”, já que não sabemos ao certo, se a mulher (Tayná Alves) está morta ou desmaiada. E mostra familiaridade ao querer compungir o espectador, deselegantemente usando a trilha sonora na última cena de clímax do filme (morte do avô), em vez de permitir que isso aconteça por uma leitura pura por parte do espectador sobre o peso dramático do evento mostrado, o que seria uma decisão mais sofisticada.

Ainda sim, a história de um garoto de origem humilde, que sonhava com futebol, e tem seus sonhos drasticamente interrompidos, tinha tudo para se tornar uma história genérica, mas isso não acontece, os elementos aqui já observados nos permitem mergulhar na obra, comprá-la. Refletir sobre sua aplicabilidade em nosso dia a dia, passamos a enxergar quais são os fatores que levam uma pessoa a dependência tóxica. Reconhecemos Maicon, como mais um dentre várias pessoas que nos lembramos do dia a dia com a mesma história de vida do personagem. Automaticamente levantam-se certas questões. De quem é a culpa? A culpa é devido ao abandono dos pais? A ausência ou desatenção da família na educação do individuo? Ou devido à omissão do Estado, em garantir condições básicas de qualidade de vida? Ou seria unicamente culpa da pessoa que embarca no mundo das drogas?

Só fazemos todas essas pergunta ao final do filme, porque a obra de Deyvison cumpre o seu objetivo. E de forma nua e crua, mostra que enquanto as mazelas sociais ainda existirem, muitos “Maicon” infelizmente podem acabar não alcançando o tão sonhado objetivo, de ser tornar um dia titular de um grande time.

Escrita por Wallace Pontes (Redator de Cineminha 7). 
Amante Inveterado da sétima arte!


                                           
P.S.: Nunca imaginei que um dia faria uma crítica, sobre uma produção que tivesse participado, adorei o convite, e fui honesto em meu papel como crítico.
Como ator digo que foi um imenso prazer trabalhar ao lado de pessoas tão emocionantes e claro com um personagem tão prazeroso e humano, como o Maicon, não considero que tenho produzido o Maicon em momento algum, acredito muito mais que o Maicon me escolheu para ser o seu avatar, e servir de excelente material de reflexão para que tenha contato com essa obra.

Nenhum comentário:

Postar um comentário